Breve interregno

Por motivos profissionais tive de interromper a publicação deste Diário por alguns dias.
Retomarei a tarefa no início da próxima semana.
A todos os leitores que simpaticamente acompanham este blog peço compreensão e apresento as minhas desculpas.
Obrigado!

Dia 5 de Julho de 1916

Saímos só hoje do “Portugal”. Para o Tungue (Parlura) viemos em barcaças timonadas por pretos.

A meio do caminho encalhamos e estivemos à espera da maré das 7 e meia ás 3 da tarde. Foi um tempo de maçada. Porlura é um ponto de África com algumas choças. Quem olha  em direcção ao mar goza de uma vista bonita, extremamente agradável. A margem é povoada de palmeiras e pelo mar dentro vimos entrar línguas de terra onde as palmeiras e mangas se mostram ufanas de vida. O mar alonga-se no infinito e ao largo eu diviso os rolos de fumo do meu navio.

O clima é alguma coisa quente e da sua salubridade ou insalubridade não posso ainda dizer.

Comemos ás 7 horas rancho geral, nunca comido, e como nós os oficiais.

Tempo de campanha.

Ai quem me dera na minha terra ouvindo a voz da minha irmã, a voz amada da minha família!

Minha terra!

Que saudade na minha alma, ó terra dos meus avós!

Dia 4 de Julho de 1916

Tanta página escrita sem se encontrarem nelas uma migalha, uma palavra daquela dedicação, daquele sentimento, à mais querida e mais sentida da minha alma!

Mas porque será que eu ainda não falei nela?

E eu não esqueci o brilho dos seus olhos, os seus lábios de púrpura, os cabelos negros de A..

E eu recordo todos os dias a beleza do seu espírito, a perfeição da sua alma e aquela voz que diz carícias.

Porque não falei eu ainda?...

Dia 3 de Julho de 1916

Escrevi hoje para Aveiro às pessoas que para mim são mais queridas.

Quanta saudade nestas cartas!...

Parece que é amanhã o desembarque.

E, sendo assim, é hoje a última noite que vou dormir no meu beliche, sobre o mar, sobre a água agora tão mansa, tão tranquila, que o seu beijo às paredes do meu navio é uma doce prece de namorado feliz.

E, digo com sinceridade, apesar de ter viajado tanto tempo, a ponto de me aborrecer às vezes, eu vou deixar o “Portugal” com certa pena, com saudade, com tristeza.

Não é por ir para uma vida pior. Não.

Mesmo que fosse para a felicidade completa, esta pena existia.

Que diabo! Nós somos novos, temos alma. Esta alma sente, dedica-se, cria amizade, afecto ás pessoas e às coisas.

O “Portugal” tem sido a minha casa há 5 semanas. E todo o homem tem amor à sua casa, ao seu lar, ao quarto onde adormece e sonha.

Vou deixar com saudade o “Portugal”.

Já não é embalado o meu adormecer pelo seu balanço, e à noitinha já não sinto o bater da água, nem vejo a espuma luminosa da onda.

Ai quanta recordação traz o mar, a vela que se mostra e desaparece numa elevação de água e depois torna a vir!

Ai quantas recordações das noites no tombadilho, das noites semeadas de estrelas, dos fados e cantigas da minha terra cantados entre dentes, em surdina, pela rapaziada amiga!...

Agora mesmo ouço um dos fados que mais me faz sentir, que me enche de saudade, que aumenta a minha nostalgia dessa terra onde eu nasci.

O fado!... Canção do meu pais mais querido, que só a compreendem as almas portuguesas, essas almas sempre crianças, sempre leves, sentimentais, românticas, saudosas como o luar da sua Pátria!...

O fado é triste. Uma alma que o canta, sentindo-o, é uma alma que sabe amar.

O fado é essa canção que nasce do íntimo, que vem do nosso sentimento e que aflora aos lábios com toda a tristeza de quem o canta.

Não deve demorar muito o começo das operações contra os alemães. Diz-se que será obra de pouca demora a resistência que deverão oferecer e que para o Natal nós já deveremos estar em casa.

A dificuldade principal é a travessia do Rovuma, rio bastante largo. Na margem oposta à nossa o inimigo espera-nos. Estão bem entrincheirados, trincheiras blindadas, e os alemães servem-se de metralhadoras para obstar o desembarque.

Eu tenho ânimo e esperança de vencer.

Esta força, este calor vêm da minha idade, do meu sangue, dos meus sonhos, de uma voz muito íntima que grita: “Tem coragem, ânimo. Lembra-te que és homem!”.

Estou animado e tenho esperança de em breve regressar ao meu País.

Mas não será esta esperança uma ilusão de rapaz, uma quimera que nasce do desejo imenso de ver os meus?

Dia 2 de Julho de 1916

Às 2 horas da tarde fundeamos na baía em frente ao Tungue. É o terminus da nossa viagem. Vou deixar o “Portugal” depois de durante 5 semanas vivermos nele.

Poucos momentos depois de lançarmos ferro vimo-nos cercados por um grande número de pangaias tripuladas por pretos que vêm descarregar o navio. Pela pouca profundidade ficámos longe da terra e, assim, temos de nos servir destas embarcações para irmos para o litoral.

Por indivíduos que vieram a bordo soube que estavam  em combate os nossos soldados e que estavam com vantagem. Será assim?

Praza a Deus que todos os nossos desejos se cumpram e que Portugal, herói antigo, gigante dos mares, possa de novo desfraldar vitoriosa a sua bandeira.

Vai começar a vida atribulada da campanha.

Vai começar o nosso esforço em pró da Pátria, em favor de Portugal.

Breve eu verei partir, diminuir, esfumar-se e desaparecer o barco que me trouxe. Vai em direcção a Portugal. Ele leva as minhas saudações à Pátria, à Família e à namorada muito querida. Ele leva os meus pensamentos para as almas elevadas que pensam no soldado perdido nas terras africanas.

Pátria, minha Pátria, que, ao menos, não sejas ingrata!

 

Dia 28 de Junho de 1916 (2)

Faz hoje um mês que embarcámos.

30 dias sobre as águas.

Vida enfadonha, monótona, aborrecida.

Que diabo, compreende-se uma viagem de oito dias, mesmo de quinze. Mas 30 dias! É de envelhecer, é de criar brancas na nossa juba negra.

Se ao menos houvesse mulheres... Seriam para nós esses dias umas simples horas... Mas assim...

É hoje véspera de S. Pedro.

Na minha terra há festas, o velho pescador mostra-se imponente às raparigas, triunfante das suas enormes chaves.

Ele abre as portas do céu, e as raparigas entre uma oração e uma cantiga pedem-lhe que lhes abra as da terra.

E na suposição de serem ouvidas, as raparigas da minha terra vêm a cantar pelas ruas fora, abraçadas aos conversadores, deixando-se beijar nos olhos, nas faces, na boca... sem perceberem que se vão perdendo e que o velho pescador, surdo aos seus rogos, conserva sempre a mesma atitude e não desce a abrir-lhes a felicidade perdida.

Raparigas da minha terra, nos vossos lábios de morango, húmidos de desejo, quentes de vida, há um não sei quê que atrai e prende, e, sem o sentirmos, faz fundir neles os nossos lábios num beijo muito longo, muito rubro, interminável, criador de novos desejos e novas loucuras!...

Véspera de S. Pedro a 30 dias da minha Pátria!...

Dia 28 de Junho de 1916

Atracámos no cais de Lourenço Marques no dia 24.

Eram 6 horas da tarde. Noite fechada.

Não vou descrever a cidade.

Seria maçada para mim e maçada para quem um dia abrir estas folhas.

A cidade agrada e é movimentada.

Muito pitoresca e com alguns prédios muito bons.

Não quero perder-me em descrições nem falar em inutilidades.

Devo dizer, porém, que tenho Lourenço Marques numa impressão e recordações muito gratas.

Não poderia escrever sem deixar escritos os nomes de Carlos Pinto Coelho, António Salema, João Dias Monteiro, Sebastião Jayme de Carvalho e Damas, amigos que não se podem esquecer.

A este grupo de rapazes devo eu e meus companheiros os momentos mais felizes desde que partimos da nossa terra.

Amáveis em extremo, proporcionaram belos tempos que, por serem belos, passaram breves.

Com eles passámos na Polana, praia de banhos muito interessante, a véspera da partida, dia 27 de Junho.

O que foi esse dia não se poderá escrever.

Os momentos felizes da nossa vida passam tão rápidos, tão efémeros, têm uma vida tão limitada e são de tal modo grandiosos que não há tempo nem imaginação capaz de os descrever.

Quem pode passar a tinta uma gargalhada?

Quem poderá fixar no papel um espadanar de água, uma frase que sai espontânea e que se apaga sem dar tempo a decorar-se?

O dia na Polana não esquecerá mais. Dia de rapaziada, com aquela viveza da nossa idade, com o riso da nossa alma.

Tomámos banho no mar.

Demolhámo-nos, é o termo. Concerteza que se o bacalhau que nos dão a bordo estivesse na água tanto tempo como nós estivemos não seria necessário afogá-lo em azeite como acontece sempre.

Após o banho foi-nos oferecido um almoço.

Eram quinze à mesa. Hernâni, Camilo, Ferrão, Leite, Vasconcelos, Magalhães, Gustavo, Pinto Coelho, Salema, Dias, Monteiro, Damas, Edmundo Chaves, Sebastião de Carvalho e eu.

Almoço animado e no qual o Hernâni fez sentir em seu nome  e de todos nós rapazes amigos, a gratidão que nos invadia e o prazer de uma reunião tão sincera.

Findo o almoço fizemos uma excursão até ao interior e regressámos à Polana pela beira-mar, voltando á noite para a cidade.

Dia bem passado, que serve de amostra.

Partimos dia 28, e esta partida foi custosa porque deixávamos amigos, e esta partida foi mais um quebrar das nossas ilusões.

Nas taças de champanhe bebidas em honra dos companheiros de horas brilhou, estremeceu, e morreu uma estrela da nossa mocidade.

Trocávamos a vida pela jornada da noite.

Não quero terminar sem me referir à vida em Lourenço Marques.

Vida caríssima. Um exemplo: uma ceia para cinco num bar – um bife, uma costeleta, rim com ovos e café para mim, Rebocho, Ferrão, Hernâni e Leite – custou 8$500 réis.

O bar é um restaurante e café onde se explora descaradamente.

Um copo de leite custa 240 e um de cerveja 300.

É tudo assim.

Bitola alta. A coisa mais barata que se encontra na cidade são as estampilhas.

Dia 23 de Junho de 1916

Ó fogueiras, ó cantigas,

Saudades, recordações,

Cantai, e cantai raparigas,

Batei, batei corações!

 

É assim a quadra de Auto?

Véspera de S. João a bordo...

Que palavras, que linhas traduzem a saudade dessas festas da nossa terra?

Que frase traduzirá a saudade das fogueiras, da bilha de água colhida à meia-noite, das cantigas ao orvalho, do ovo partido na água?

Noite de S. João no mar!...

Para que estão a brilhar no céu as estrelas e a lua vem iluminar o tombadilho do meu navio?

Noite de S. João da minha terra!

Onde estão esses ranchos de raparigas, bailado de elfas, que pela noite me vinham acordar para ir a correr pelas ruas e bailar também?

Onde estais, olhos da minha amada?

Uma da madrugada.

Adivinho as cantigas dessas ruas, as guitarradas, as labaredas dessas achas desfazendo-se nas brasas.

Para que brilhais no céu, estrelas, se um vapor isolado do mundo corre veloz para a morte?...

Noite de S. João! Ó noites da minha infância, vinde embalar-me com as vossas recordações!

Dia 20 de Junho de 1916

Deixámos o Cabo no dia 20 pela uma da tarde.

Tarde nevoenta, lençol velando esse espectáculo grandioso que é a cidade reclinada sobre o dorso dessa espécie de montanha que se eleva acima do mar.

Não houve novidades? Houve-as sim.

Festejaram-se nesse dia os anos do Hernâni e do Leite. Os 23 anos de dois companheiros. 23 anos que jamais esquecem, passados longe da Família, nas zonas tórridas de uma África inóspita.

Quebraram-se 5 garrafas de champanhe.

Mas o correr do champanhe foi triste.

Pois não era uma festa triste, um engano de almas?

O champanhe correu lânguido e a sua espuma cantava uma elegia.

Que direi eu a essa festa sem luz, sem vida, sem animação? As almas jovens, diz a lenda, quando sofriam costumavam mergulhar esse sofrimento em gotas das uvas do Egeu, que as namoradas tinham esmagado em taças de oiro.

Esse sofrimento, narra a mesma lenda, mitigava-se com aquelas lágrimas e as namoradas adormeciam  num regaço trancado a rosas, entre perfumes e canções.

O nosso sofrimento não tem esse adormecer, nem o nosso champanhe foi servido por mãos de namoradas.

Com ele saudámos uns amigos que nasciam, e as suas namoradas ausentes, longe, nos confins da noite.

Festejo triste de almas enamoradas!...

É tão triste, e tão extenuante que soube adormecer quem bebeu esse galeno, servido nas taças pelas mãos másculas de um camarateiro de 2ª classe...

Ai saudades, ai recordações!...  

Dia 19 de Junho de 1916

Passámos pela manhã o Cabo da Boa Esperança.
É lindo o panorama que se observa do mar. Depois de dias sobre dias passados sem ver terra, avistá-la é para o que viaja uma das maiores alegrias.
Terra!... gritam. E os olhos ávidos, loucos de desejo, procuram perceber a sombra que é terra, a terra que é vida. Só o pode dizer quem por muito tempo se viu afastado dela...
A Cidade do Cabo é linda.
belas ruas, belos edifícios, tem uma civilização europeia. Há mulheres bonitas.
Nós temos das inglesas uma impressão desagradável.
Quando se fala diante de nós de inglesas, nós sonhamo-las logo esgrouviadas, pálidas, cabelos de um louro sem vida, duma magreza britânica. E porque pensamos nós assim?
Em Portugal pulula um enxame de professoras inglesas, velhas, ruivas, de meia-idade. De entre dezenas, de centenas, de entre esse enxame que inunda Portugal, não se encontra uma interessante, bonita, de aparência agradável.
A "Miss" de Portugal é uma "Miss" esquelética.
Meia girafa, não tem aquela luz que os olhos criam e que fascina, os cabelos não são pujantes de vida.
Caem-lhe em ondulações mortas, flácidas, agonizantes.
A contemplação da "Miss" causa frio, arrepia, lembra as neves de Albion, dá a ideia de um cangalho de ossos enfiado numas sedas berrantes.
A inglesa de Portugal... que grande estafermo!
Eu tinha das inglesas este pensar.
É certo que na "Família Inglesa" eu conhecera uma inglesinha como não conheci outra mulher ainda.
Miss Jenny é a mulher que pode desejar a alama mais artista.
Quase amava essa Miss loira, branca como as rendas, débil, delicada, de uma delicadeza tal que "quase se subtraía ao tacto".
Depois da leitura no meu cérebro havia a admiração pela mulher britânica.
Oh! Miss Jenny é o tipo da innglesa!
Mas - ó triste desilusão da alma mais iludida - na rua, ainda adormecido por esse encanto, por essa beleza de livros, mas que acreditara existir, meio estonteado pela arte com que se apresentara, meus olhos foram despertados e a minha alma desceu à realidade ao ver surgir, altiva e triunfante, de uma altivez e triunfo cintilantes, a Miss do meu país, magra, esclerótica, usando chinó!
A Inglaterra exporta todas as suas mulheres feias.
Esparta eliminava as disformes, as inúteis.
A Inglaterra não as elimina. Livra-se delas e, com aquela troça e superioridade que lhe são peculiares, atira-as à cara dos vizinhos.
Quando cheguei ao Cabo ia na convicção de encontrar só mulheres feias.
Esvaiara-se já a imagem da irmã de Carlos. Para mim a inglesa era um homem que vestia saias.
Mas o Cabo tem boas mulheres.
Ao ver as primeiras eu perguntei: São inglesas?
Disseram-me que sim.
E ao ver deslizar apresadas aquelas mulheres brancas, muito loiras, tranças de oiro vivo, vagas de âmbar banhando uma carnação de de leite, pensei que era verdadeira em toda a extensão essa ideal inglesinha de Júlio Diniz. Flor admirável de inocência, perfume sentido de beleza.
São feias, masculinas, as inglesas que vivem no meu país. A Bretanha expulsa-as para ficar com as que são belas e admiráveis.
A Bretanha faz conhecer somente as esgrouviadas para que o estranho não vá cobiçar essas carnes macias e ardentes que contrastam com os seus gelos, ásperos e frios.
A egoísta Inglaterra...
No Cabo vêem-se inglesas galantíssimas.
Vi-as eu duma graça, duma finura inegualáveis.
Misses loiras, muito loiras, tranças de Sol, A Miss Lhom do "Mistério de Sintra", Misses que quando passam deixam um rasto de estrelas e um olhar muito apaixonado, muito português, pensando nelas.
São quase todas assim as mulheres do Cabo.
Quem as olhará que não sinta um clarão muito suave verter-se-lhe na alma?
A nossa estada na cidade foi breve.
Jantámos num hotel de um português, fomos à noite ao cinema, onde tive ocasião de apreciar uma vez mais o patriotismo o inglês, patriotismo que se traduz e mostra nas coisas mínimas.

Dia 10 de Junho de 1916

Perguntaram-me porque não tomo nota de todos os acontecimentos. Porque não faço um diáriozinho. Que, depois, vem recordar tempos da minha mocidade, tristezas que se converteram em lágrimas e lágrimas que nunca foram de tristeza.
Que mais tarde, quando a poeira da idade nevar meus cabelos eu hei-de alegrar-me com a volta à vida que morreu pelas páginas da minha escrita.
Pérolas, dizem, cairão sobre esses seus escritos, e essas pérolas serão o novo sangue dessas páginas, dar-lhe-ão vida, correrá de novo a energia e a vida dos 22 anos.
Toda a gente vive um pouco do passado.
Se cortássemos o que nos liga a tempos idos, se num círculo isolássemos um homem e lhe disséssemos:
"A tua vida resume-se nesse círculo. Ele é o presente. Separa-te do passado. Dele para lá só há trevas, um desconhecido a teus olhos, à tua alma, ao teu coração. Amaste um dia? Partiste aos bocados o coração? Amaste um dia uma mulher? Pois bem!
Nada existe já. Nunca mais o teu olhar beijará esse corpo que para ti era uma sedução. Tu ficas amarrado ao tempo que esse círculo limita. Morreu na tua memória a saudade do passado."
O que seria esse homem?
Átomo lançado ao vento, partícula sem ligação. Esse homem era um isolado.
Que a vida vive uma grande parte do pasado e é ele que alimenta os velhos.
Há momentos que um amigo viu uns alinhavos de papel que eu acabara de escrever. Perguntou-me se eles eram o meu diário. estas frases suscitaram-me as linhas abaixo escritas:

"A propósito do meu diário do Sr. Hernãni"

Alguém chamou a meia dúzia de linhas "o meu diário".
Como se tal nome coubesse a sentimentos que numa harmonia nascem da alma, crescem e se expandem para morrer numa folha!...
Como se tal nome se pudesse dar a uma esperança que, ao morrer numa manhã de névoa, pediu para ficar escrita.
Um diário!...
Há palavras na vida que gravam bem fundo no nosso espírito certos pensamentos.
Eu tenho horror ao diário.
Eu não compreendo como se possa, minuto a minuto, grão a grão, escrever, caracterizar e modelar bem aos nossos pensamentos a luz musical da nossa alma, a tempestade da nossa sensibilidade, o desfazer da onda que beija as paredes do meu beliche, as andorinhas [não vale piadas ao Hernâni], farrapos de espuma que vogam no espaço e num beijo longo mordiscam o azul da água, ou qualquer facto da nossa vida.
Não compreendo, repito.
Um diário é sempre uma mentira. Mentira muitas vezes desconhecida, que aflora sem se perceber que nem espontânea é, trazida pela nossa inteligência, educação e quase sempre pelo romantismo da nossa alma e por ideias romanescas do nosso cérebro.
Qualquer acontecimento da vida, qualquer sorriso de mulher que se lembra, a mais leve carícia que se recorda de uns braços de mármore são para nós elevados, divinizados, e aí estamos nós desfazendo-nos em torrentes de escrita, escrevendo o que não se sente, e deixando ao mais escuso escaninho do esquecimento a verdade, na maioria picante, e que deslustraria o brilho da memória.
Nós fantasiamos sempre.
A verdade escapa-se sempre entre as flores do nosso estilo. A nossa educação, os nossos sentimentos, o idealismo que bebemos nos livros, dão cor e vida ao vulgar, de um riso faz-se um poema, de um movimento de lábios uma alvorada e uma oração.
O diário não é o espelho da verdade.
Não é a fotografia do acontecido.
É, posso dizê-lo, um negativo.
Eu conheço almas que sentem qualquer acontecimento de uma maneira precisamente oposta.
O que será um diário de uma alma assim?
De um mundo de trevas nasce um mundo de luz.
Em todo o homem há o gosto pela quimera.
A quimera, a ilusão e a fantasia são as purificadoras da alma.
Um homem que sonhe dá aos acontecimentos uma forma de oiro.
De um brilhar de água tece um sorriso de estrela, de um zumbir de abelha uma gargalhada de criança.
A fantasia acompanha o seu escrito. Na sua frase há pouco de verdade e muito de inteligência e muito de ilusão.
Alguém existe que um dia viu certa cena de uma representação. Leve, simples, risonha, tem uma passagem que o fez estremecer, pensar, sonhar, e, por fim, idear coisas que, postas num diário, fariam pasmar os crentes. A confissão de uma criança de quinze anos fez sorrir o homem que a amava.
Ele tinha três vezes a sua idade. Fora seu protector desvelado e querido, e a criança, numa sinceridade e inocência de desabrochar de lírio, segredou-lhe um dia o seu sentir.
Não foi amada, e aquela luz que tinha nascido nunca mais brilhou.
Um dia foi ele o apaixonado confessado.
Era tarde...
A flor nascera. E ao desabrochar, quando os mais leves e finos perfumes subiam numa carícia e lhe cantavam amores, viu-se só e tornou-se triste...
Não se soube aproveitar o seu encanto. E mais tarde, quando num desejo louco se procurava o seu aroma, a dedicação encontrou-se numa saudade.
A saudade é, no dizer de um poeta, um perfume de flor que já murchou.
A criança morrera e ficara a mulher. A flor transformou-se em fruto.
O sentir da criança não se transmitira à mulher.
A luz não fora aproveitada e morrera.
Alguém analisou esta cena e aplicou-a a si.
Podiam-se escrever os pensamentos que ela originaria.
Mas a fantasia é tal, transforma tanto o acontecimento, que se escrevesse o passado, ele seria a negação mais completa do sucedido.
Porque a alma desvia o pensamento, porque o cérebro é vencido pelo coração.

Alguém chamou a meia dúzia de linhas um diário.
Sorri com a lembrança.
Consinto que se escrevam as impressões de um dia.
Mas não que essa tinta, esses rabiscos, essas palavras retratem e queiram significar a verdade desse dia, o que ele valeu, o que foi, o seu valor real, absoluto, preciso. Não.
Essas impressões hão-de ser o sonho de uma alma. Nessas linhas há-de viver o que um gesto, uma graça, uma frase ouvida de uns lábios mais lindos, um queixume de mulher, e o brilho de uns dentes muito brancos gravaram na nossa alma.
A impressão sentida, o sobressalto do espírito, o bater célere do nosso coração.
Esse diário, se assim devo chamar, é a recordação de uma viagem ao palácio da quimera.
Não se pode apresentar como uma cópia do que passou.
Um diário é sempre a expressão da nossa inteligência influenciada ao máximo pelo romantismo do nossa espírito.
É sempre uma mentira. Mentira que aumenta a saudade dos tempos passados, umas vezes, mentira que entristece, magoa e cria dor, por outras.
Mentira de dois mundos. um de luz, outro de sombras. Num diário há sempre o extremo.
Ou o exagero para o belo e o espiritual, a que chamo sonho, ilusão e luz, ou o exageropara o mal e para a treva, a que chamo mentira má.
Dois pólos. Um em que se costuma adormecer a alma a um cântico divino. Outro em que o cérebro vive sem clarão, sem brilho, sem luz.
Por isto, um diário não é a verdade da vida. Quer ele traduza a felicidade ou os seus desgostos.
O primeiro faz-me idear, divagar, ser paladino do vago e imaterial. O segundo produz o efeito do gelo caindo sobre a chama. A sua leitura apaga o meu entusiasmo.
É por isto que eu não escrevo o meu diário.
Dar-lhe-ia sempre a primeira função, a outra nunca.
E assim, não poderia passar a escrito o acontecimento sem lhe imprimir mais vida, mais criação.
Passava uma frase do meu espírito.
A realidade desapareceria entre as faúlhas da minha alma. E, decerto, não podia eu apresentar amanhã essas folhas divididas em meses, semanas e dias como espelho da minha vida.
Por ele não poderia fazer um estudo, uma investigação, perscrutar o eco dos tempos que passaram, porque a luz iluminadora que lhe imprimira o meu sentimento fora tal que apagara para sempre a realidade.
E aqui está porque não escrevo dia a dia o corte da água pelo meu vapor, o esvoaçar do peixe, banhando-se na luz purificadora da manhã, o novelo de espuma que salpica o mar, o argonauta florindo como uma rosa à superfície da onda, nem o voo dos pássaros que dão as boas manhãs ao madrugador.
Um diário de bordo numa viagem sem mulheres...
Apontamentos de todos os dias!
Para quê? Pois não há sempre a mesma cor, o mesmo brilhar de água, a mesma luz?
Não somos nós há muitos dias o centro do mesmo círculo de água?
É sempre a mesma vida.
É sempre a mesma impressão.
E depois, superior a estas palavras ocas, banais, desfloridas, sem vida - as patetices que o aborrecimento da viagem sugere - falta-me o génio, a força e a vontade para escrever. Génio este, força e vontade estas que existem em excesso, abundância e superavit ao Hernâni, que todas as tardes grava no seu carnet a latitude, longitude e congéneres, e transforma a realidade na mais mística pela fantasia do seu espírito de 23 anos.

Dia 9 de Junho de 1916

Passámos o Equador às 7 da manhã de dia 9.
Nenhum calor, o que me fez dizer e crer que o calor se transferiu para o Pólo e o frio para o Equador

Dia 4 de Junho de 1916

Estamos chegados a Cabo Verde. Após oito dias de viagem avistámos terra ainda na cama. Era S. Vicente. Semelhava a uma nuvem acinzentada, recortada como um bordado. A entrada no porto agrada. Fomos à cidade. Costumes interessantes. O tipo indígena é bronzeado e a mulher é, no geral, simpática, posto que as formas não sejam correctas.
À volta para o vapor vimo-nos um pouco embaraçados porque o mar estava agitado. A lancha de um cruzador inglês prestou-nos auxílio, rebocando-nos até ao vapor.

Dia 30 de Maio de 1916

Só hoje, dia 30, me veio às mãos o teu telegrama, A. A tua última despedida caiu bem na minha alma. Longe de ti, vendo apenas o dorso azul dos mares cortado de onde a onde por brancas rendas de espuma, eu sinto-me desfalecer como se uma energia grande me faltasse.
Faltam-me os teus olhos, minha A. Falta-me essa luz voluptuosa que tu derramas nas tuas tranças.
O navio corre e é sempre o centro deste oceano imenso. Veio hoje alegrar o mar uma vela branca, asas brancas de um galeão dourado. Imensa gaivota do oceano, teve medo do fumo negro do meu barco e, rápida, tímida e veloz partiu para outros mares e nunca mais a vi.
Como tudo me abandona, meu Deus!....

Dia 29 de Maio de 1916

Uma noite passada a bordo.
A noite de núpcias com o mar!
Cerca-me o mar imenso. Além, muito além, na linha de união entre o céu e água, desse abraço da água com as nuvens, desse himneu perene do céu, do azul com a espuma, algumas velas passam.
Avistou-se o destroyer "Guadiana" por estibordo às 8 e meia da manhã. Vem, dizem-nos, proteger o "Portugal". Será assim?
Pela tarde avistaram-se dois vapores de carga em direcção a Norte. Toda esta amostra de vida nos anima e distrai.
Até às 5 da tarde fui indiferente aos balanços do vapor. A esta hora, porém, tive de ceder e o meu jantar foi encher o estómago de um tubarão que acompanhava o vapor. Foi um enjoo rápido, passageiro, fugaz, que se converteu num apetite devorador.

Dia 28 de Maio de 1916

O vapor "Portugal" levantou ferro às 5 da tarde do dia 28 de Maio de 1916.
A saída da Pátria é um acontecimento triste. É certo que a partida se reveste, por vezes, de um esplendor e alegria, aparentando, assim, a inexistência de um mal-estar que nos invade sempre. Eu sei, eu sinto-o, que nada há mais belo e sublime que defender a terra-mãe mesmo que, para isso, a tenhamos de abandonar. Não é só dentro da nossa terra que defendemos a nossa Pátria. Muitas vezes, quase sempre até, a defesa de um país fora dele traz resultados mais palpáveis, mais nítidos, de um melhor resultado. Ah! Mas a saída da terra onde se nasceu, onde se viveu a infância e se aspirou os primeiros perfumes e se olharam as primeiras cores, é sempre um acontecimento triste. Na frase daqueles jovens espartanos qo rei persa resume-se toda a dor, toda a saudade que o afastamento da nossa Pátria traz.
Seis horas da tarde!... Lisboa esfuma-se numa névoa, vai-se perdendo, desaparecendo quase.
Começa no nosso espírito o desfilar de todos os sonhos, de todas as quimeras, de toda essa vida que talvez não volte mais. Veloz como o raio é a existência do nosso bem-estar. A um bem efémero sucede uma contrariedade que resiste. À luz sucede a treva.
Só agora sei, ó Pátria, quão forte é o amor por ti; agora o percebo, agora a minha alma se eleva numa oração para que a minha ausência curta seja. Eis uma sombria Lisboa. Meus olhos perdem-te em breve e eu serei o minúsculo centro da imensidade atlãntica.
E a minha alma contigo fica, A. E o meu espírito também, alma que és só luz, pequenino corpo que os meus olhos seduziram.
Mal diviso ao longe terra!...
Mal te diviso já, ó Pátria dos meus pais!...

Preâmbulo

Pede-se indulgência a quem ler estas linhas. São sem beleza mas sinceras. Não se escrevem para mostrar que se conhece o estilo e se sabe dar uma forma rendilhada ao escrito. Escrevem-se apenas porque se sentem, e a verdade jamais deve ser prejudicada pelos brilhantismos de um estilo quase sempre vão e sem valor.

A.J.F.

Introdução

Numas férias em Trás-os-Montes andava eu a rebuscar algumas gavetas onde, quando mais novo, não me era permitido tocar.
Por entre algumas fotos antigas, jornais amarelecidos e outra quinquilharia descobri um bloco de notas com um título curioso: "Coisas que a viagem faz escrever". Reconheci de imediato a letra bem característica (e por vezes ilegível) do meu avô.
Levado pela curiosidade comecei a tentar decifrar aquela escrita, em alguns pontos desbotada, e foi com surpresa que vi que era o diário da viagem que o meu avô fez por barco até Moçambique em 1916, quando integrou o Corpo Expedicionário Português que foi defender Moçambique dos ataques alemães durante a I Guerra Mundial! Eu sabia que o meu avô tinha combatido na I Guerra, inclusivamente em França, onde participou na Batalha de La Lys. Nunca tinha imaginado que ele tivesse escrito um diário.
É este diário que me proponho transcrever para este blog, pedindo desde já desculpa, e a compreensão dos leitores, por algumas falhas que eventualmente apareçam no texto as quais se devem, apenas, à dificuldade em interpretar a letra.
Seja esta a minha homenagem a todos os que combateram pela Pátria na I Guerra, em particular ao meu avô.

Notas Biográficas

A.J.F. nasceu em 1893 em Vagos (Aveiro). Teve uma brilhante carreira como Juíz de Direito, chegando a Juíz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça e a Presidente do Tribunal da Relação do Porto, cargo que exercia na altura da sua aposentação em 1963. A sua relação com o Estado Novo nem sempre foi a melhor, tendo sido perseguido pela PIDE. Valeu-lhe, nessa altura, a sólida amizade que o ligava ao então Ministro da Justiça, seu companheiro de quarto e de tertúlias em Coimbra.
Faleceu em Alijó (Douro) em 1971.