Breve interregno

Por motivos profissionais tive de interromper a publicação deste Diário por alguns dias.
Retomarei a tarefa no início da próxima semana.
A todos os leitores que simpaticamente acompanham este blog peço compreensão e apresento as minhas desculpas.
Obrigado!

Dia 5 de Julho de 1916

Saímos só hoje do “Portugal”. Para o Tungue (Parlura) viemos em barcaças timonadas por pretos.

A meio do caminho encalhamos e estivemos à espera da maré das 7 e meia ás 3 da tarde. Foi um tempo de maçada. Porlura é um ponto de África com algumas choças. Quem olha  em direcção ao mar goza de uma vista bonita, extremamente agradável. A margem é povoada de palmeiras e pelo mar dentro vimos entrar línguas de terra onde as palmeiras e mangas se mostram ufanas de vida. O mar alonga-se no infinito e ao largo eu diviso os rolos de fumo do meu navio.

O clima é alguma coisa quente e da sua salubridade ou insalubridade não posso ainda dizer.

Comemos ás 7 horas rancho geral, nunca comido, e como nós os oficiais.

Tempo de campanha.

Ai quem me dera na minha terra ouvindo a voz da minha irmã, a voz amada da minha família!

Minha terra!

Que saudade na minha alma, ó terra dos meus avós!

Dia 4 de Julho de 1916

Tanta página escrita sem se encontrarem nelas uma migalha, uma palavra daquela dedicação, daquele sentimento, à mais querida e mais sentida da minha alma!

Mas porque será que eu ainda não falei nela?

E eu não esqueci o brilho dos seus olhos, os seus lábios de púrpura, os cabelos negros de A..

E eu recordo todos os dias a beleza do seu espírito, a perfeição da sua alma e aquela voz que diz carícias.

Porque não falei eu ainda?...

Dia 3 de Julho de 1916

Escrevi hoje para Aveiro às pessoas que para mim são mais queridas.

Quanta saudade nestas cartas!...

Parece que é amanhã o desembarque.

E, sendo assim, é hoje a última noite que vou dormir no meu beliche, sobre o mar, sobre a água agora tão mansa, tão tranquila, que o seu beijo às paredes do meu navio é uma doce prece de namorado feliz.

E, digo com sinceridade, apesar de ter viajado tanto tempo, a ponto de me aborrecer às vezes, eu vou deixar o “Portugal” com certa pena, com saudade, com tristeza.

Não é por ir para uma vida pior. Não.

Mesmo que fosse para a felicidade completa, esta pena existia.

Que diabo! Nós somos novos, temos alma. Esta alma sente, dedica-se, cria amizade, afecto ás pessoas e às coisas.

O “Portugal” tem sido a minha casa há 5 semanas. E todo o homem tem amor à sua casa, ao seu lar, ao quarto onde adormece e sonha.

Vou deixar com saudade o “Portugal”.

Já não é embalado o meu adormecer pelo seu balanço, e à noitinha já não sinto o bater da água, nem vejo a espuma luminosa da onda.

Ai quanta recordação traz o mar, a vela que se mostra e desaparece numa elevação de água e depois torna a vir!

Ai quantas recordações das noites no tombadilho, das noites semeadas de estrelas, dos fados e cantigas da minha terra cantados entre dentes, em surdina, pela rapaziada amiga!...

Agora mesmo ouço um dos fados que mais me faz sentir, que me enche de saudade, que aumenta a minha nostalgia dessa terra onde eu nasci.

O fado!... Canção do meu pais mais querido, que só a compreendem as almas portuguesas, essas almas sempre crianças, sempre leves, sentimentais, românticas, saudosas como o luar da sua Pátria!...

O fado é triste. Uma alma que o canta, sentindo-o, é uma alma que sabe amar.

O fado é essa canção que nasce do íntimo, que vem do nosso sentimento e que aflora aos lábios com toda a tristeza de quem o canta.

Não deve demorar muito o começo das operações contra os alemães. Diz-se que será obra de pouca demora a resistência que deverão oferecer e que para o Natal nós já deveremos estar em casa.

A dificuldade principal é a travessia do Rovuma, rio bastante largo. Na margem oposta à nossa o inimigo espera-nos. Estão bem entrincheirados, trincheiras blindadas, e os alemães servem-se de metralhadoras para obstar o desembarque.

Eu tenho ânimo e esperança de vencer.

Esta força, este calor vêm da minha idade, do meu sangue, dos meus sonhos, de uma voz muito íntima que grita: “Tem coragem, ânimo. Lembra-te que és homem!”.

Estou animado e tenho esperança de em breve regressar ao meu País.

Mas não será esta esperança uma ilusão de rapaz, uma quimera que nasce do desejo imenso de ver os meus?

Dia 2 de Julho de 1916

Às 2 horas da tarde fundeamos na baía em frente ao Tungue. É o terminus da nossa viagem. Vou deixar o “Portugal” depois de durante 5 semanas vivermos nele.

Poucos momentos depois de lançarmos ferro vimo-nos cercados por um grande número de pangaias tripuladas por pretos que vêm descarregar o navio. Pela pouca profundidade ficámos longe da terra e, assim, temos de nos servir destas embarcações para irmos para o litoral.

Por indivíduos que vieram a bordo soube que estavam  em combate os nossos soldados e que estavam com vantagem. Será assim?

Praza a Deus que todos os nossos desejos se cumpram e que Portugal, herói antigo, gigante dos mares, possa de novo desfraldar vitoriosa a sua bandeira.

Vai começar a vida atribulada da campanha.

Vai começar o nosso esforço em pró da Pátria, em favor de Portugal.

Breve eu verei partir, diminuir, esfumar-se e desaparecer o barco que me trouxe. Vai em direcção a Portugal. Ele leva as minhas saudações à Pátria, à Família e à namorada muito querida. Ele leva os meus pensamentos para as almas elevadas que pensam no soldado perdido nas terras africanas.

Pátria, minha Pátria, que, ao menos, não sejas ingrata!

 

Dia 28 de Junho de 1916 (2)

Faz hoje um mês que embarcámos.

30 dias sobre as águas.

Vida enfadonha, monótona, aborrecida.

Que diabo, compreende-se uma viagem de oito dias, mesmo de quinze. Mas 30 dias! É de envelhecer, é de criar brancas na nossa juba negra.

Se ao menos houvesse mulheres... Seriam para nós esses dias umas simples horas... Mas assim...

É hoje véspera de S. Pedro.

Na minha terra há festas, o velho pescador mostra-se imponente às raparigas, triunfante das suas enormes chaves.

Ele abre as portas do céu, e as raparigas entre uma oração e uma cantiga pedem-lhe que lhes abra as da terra.

E na suposição de serem ouvidas, as raparigas da minha terra vêm a cantar pelas ruas fora, abraçadas aos conversadores, deixando-se beijar nos olhos, nas faces, na boca... sem perceberem que se vão perdendo e que o velho pescador, surdo aos seus rogos, conserva sempre a mesma atitude e não desce a abrir-lhes a felicidade perdida.

Raparigas da minha terra, nos vossos lábios de morango, húmidos de desejo, quentes de vida, há um não sei quê que atrai e prende, e, sem o sentirmos, faz fundir neles os nossos lábios num beijo muito longo, muito rubro, interminável, criador de novos desejos e novas loucuras!...

Véspera de S. Pedro a 30 dias da minha Pátria!...

Dia 28 de Junho de 1916

Atracámos no cais de Lourenço Marques no dia 24.

Eram 6 horas da tarde. Noite fechada.

Não vou descrever a cidade.

Seria maçada para mim e maçada para quem um dia abrir estas folhas.

A cidade agrada e é movimentada.

Muito pitoresca e com alguns prédios muito bons.

Não quero perder-me em descrições nem falar em inutilidades.

Devo dizer, porém, que tenho Lourenço Marques numa impressão e recordações muito gratas.

Não poderia escrever sem deixar escritos os nomes de Carlos Pinto Coelho, António Salema, João Dias Monteiro, Sebastião Jayme de Carvalho e Damas, amigos que não se podem esquecer.

A este grupo de rapazes devo eu e meus companheiros os momentos mais felizes desde que partimos da nossa terra.

Amáveis em extremo, proporcionaram belos tempos que, por serem belos, passaram breves.

Com eles passámos na Polana, praia de banhos muito interessante, a véspera da partida, dia 27 de Junho.

O que foi esse dia não se poderá escrever.

Os momentos felizes da nossa vida passam tão rápidos, tão efémeros, têm uma vida tão limitada e são de tal modo grandiosos que não há tempo nem imaginação capaz de os descrever.

Quem pode passar a tinta uma gargalhada?

Quem poderá fixar no papel um espadanar de água, uma frase que sai espontânea e que se apaga sem dar tempo a decorar-se?

O dia na Polana não esquecerá mais. Dia de rapaziada, com aquela viveza da nossa idade, com o riso da nossa alma.

Tomámos banho no mar.

Demolhámo-nos, é o termo. Concerteza que se o bacalhau que nos dão a bordo estivesse na água tanto tempo como nós estivemos não seria necessário afogá-lo em azeite como acontece sempre.

Após o banho foi-nos oferecido um almoço.

Eram quinze à mesa. Hernâni, Camilo, Ferrão, Leite, Vasconcelos, Magalhães, Gustavo, Pinto Coelho, Salema, Dias, Monteiro, Damas, Edmundo Chaves, Sebastião de Carvalho e eu.

Almoço animado e no qual o Hernâni fez sentir em seu nome  e de todos nós rapazes amigos, a gratidão que nos invadia e o prazer de uma reunião tão sincera.

Findo o almoço fizemos uma excursão até ao interior e regressámos à Polana pela beira-mar, voltando á noite para a cidade.

Dia bem passado, que serve de amostra.

Partimos dia 28, e esta partida foi custosa porque deixávamos amigos, e esta partida foi mais um quebrar das nossas ilusões.

Nas taças de champanhe bebidas em honra dos companheiros de horas brilhou, estremeceu, e morreu uma estrela da nossa mocidade.

Trocávamos a vida pela jornada da noite.

Não quero terminar sem me referir à vida em Lourenço Marques.

Vida caríssima. Um exemplo: uma ceia para cinco num bar – um bife, uma costeleta, rim com ovos e café para mim, Rebocho, Ferrão, Hernâni e Leite – custou 8$500 réis.

O bar é um restaurante e café onde se explora descaradamente.

Um copo de leite custa 240 e um de cerveja 300.

É tudo assim.

Bitola alta. A coisa mais barata que se encontra na cidade são as estampilhas.