Perguntaram-me porque não tomo nota de todos os acontecimentos. Porque não faço um diáriozinho. Que, depois, vem recordar tempos da minha mocidade, tristezas que se converteram em lágrimas e lágrimas que nunca foram de tristeza.
Que mais tarde, quando a poeira da idade nevar meus cabelos eu hei-de alegrar-me com a volta à vida que morreu pelas páginas da minha escrita.
Pérolas, dizem, cairão sobre esses seus escritos, e essas pérolas serão o novo sangue dessas páginas, dar-lhe-ão vida, correrá de novo a energia e a vida dos 22 anos.
Toda a gente vive um pouco do passado.
Se cortássemos o que nos liga a tempos idos, se num círculo isolássemos um homem e lhe disséssemos:
"A tua vida resume-se nesse círculo. Ele é o presente. Separa-te do passado. Dele para lá só há trevas, um desconhecido a teus olhos, à tua alma, ao teu coração. Amaste um dia? Partiste aos bocados o coração? Amaste um dia uma mulher? Pois bem!
Nada existe já. Nunca mais o teu olhar beijará esse corpo que para ti era uma sedução. Tu ficas amarrado ao tempo que esse círculo limita. Morreu na tua memória a saudade do passado."
O que seria esse homem?
Átomo lançado ao vento, partícula sem ligação. Esse homem era um isolado.
Que a vida vive uma grande parte do pasado e é ele que alimenta os velhos.
Há momentos que um amigo viu uns alinhavos de papel que eu acabara de escrever. Perguntou-me se eles eram o meu diário. estas frases suscitaram-me as linhas abaixo escritas:
"A propósito do meu diário do Sr. Hernãni"
Alguém chamou a meia dúzia de linhas "o meu diário".
Como se tal nome coubesse a sentimentos que numa harmonia nascem da alma, crescem e se expandem para morrer numa folha!...
Como se tal nome se pudesse dar a uma esperança que, ao morrer numa manhã de névoa, pediu para ficar escrita.
Um diário!...
Há palavras na vida que gravam bem fundo no nosso espírito certos pensamentos.
Eu tenho horror ao diário.
Eu não compreendo como se possa, minuto a minuto, grão a grão, escrever, caracterizar e modelar bem aos nossos pensamentos a luz musical da nossa alma, a tempestade da nossa sensibilidade, o desfazer da onda que beija as paredes do meu beliche, as andorinhas [não vale piadas ao Hernâni], farrapos de espuma que vogam no espaço e num beijo longo mordiscam o azul da água, ou qualquer facto da nossa vida.
Não compreendo, repito.
Um diário é sempre uma mentira. Mentira muitas vezes desconhecida, que aflora sem se perceber que nem espontânea é, trazida pela nossa inteligência, educação e quase sempre pelo romantismo da nossa alma e por ideias romanescas do nosso cérebro.
Qualquer acontecimento da vida, qualquer sorriso de mulher que se lembra, a mais leve carícia que se recorda de uns braços de mármore são para nós elevados, divinizados, e aí estamos nós desfazendo-nos em torrentes de escrita, escrevendo o que não se sente, e deixando ao mais escuso escaninho do esquecimento a verdade, na maioria picante, e que deslustraria o brilho da memória.
Nós fantasiamos sempre.
A verdade escapa-se sempre entre as flores do nosso estilo. A nossa educação, os nossos sentimentos, o idealismo que bebemos nos livros, dão cor e vida ao vulgar, de um riso faz-se um poema, de um movimento de lábios uma alvorada e uma oração.
O diário não é o espelho da verdade.
Não é a fotografia do acontecido.
É, posso dizê-lo, um negativo.
Eu conheço almas que sentem qualquer acontecimento de uma maneira precisamente oposta.
O que será um diário de uma alma assim?
De um mundo de trevas nasce um mundo de luz.
Em todo o homem há o gosto pela quimera.
A quimera, a ilusão e a fantasia são as purificadoras da alma.
Um homem que sonhe dá aos acontecimentos uma forma de oiro.
De um brilhar de água tece um sorriso de estrela, de um zumbir de abelha uma gargalhada de criança.
A fantasia acompanha o seu escrito. Na sua frase há pouco de verdade e muito de inteligência e muito de ilusão.
Alguém existe que um dia viu certa cena de uma representação. Leve, simples, risonha, tem uma passagem que o fez estremecer, pensar, sonhar, e, por fim, idear coisas que, postas num diário, fariam pasmar os crentes. A confissão de uma criança de quinze anos fez sorrir o homem que a amava.
Ele tinha três vezes a sua idade. Fora seu protector desvelado e querido, e a criança, numa sinceridade e inocência de desabrochar de lírio, segredou-lhe um dia o seu sentir.
Não foi amada, e aquela luz que tinha nascido nunca mais brilhou.
Um dia foi ele o apaixonado confessado.
Era tarde...
A flor nascera. E ao desabrochar, quando os mais leves e finos perfumes subiam numa carícia e lhe cantavam amores, viu-se só e tornou-se triste...
Não se soube aproveitar o seu encanto. E mais tarde, quando num desejo louco se procurava o seu aroma, a dedicação encontrou-se numa saudade.
A saudade é, no dizer de um poeta, um perfume de flor que já murchou.
A criança morrera e ficara a mulher. A flor transformou-se em fruto.
O sentir da criança não se transmitira à mulher.
A luz não fora aproveitada e morrera.
Alguém analisou esta cena e aplicou-a a si.
Podiam-se escrever os pensamentos que ela originaria.
Mas a fantasia é tal, transforma tanto o acontecimento, que se escrevesse o passado, ele seria a negação mais completa do sucedido.
Porque a alma desvia o pensamento, porque o cérebro é vencido pelo coração.
Alguém chamou a meia dúzia de linhas um diário.
Sorri com a lembrança.
Consinto que se escrevam as impressões de um dia.
Mas não que essa tinta, esses rabiscos, essas palavras retratem e queiram significar a verdade desse dia, o que ele valeu, o que foi, o seu valor real, absoluto, preciso. Não.
Essas impressões hão-de ser o sonho de uma alma. Nessas linhas há-de viver o que um gesto, uma graça, uma frase ouvida de uns lábios mais lindos, um queixume de mulher, e o brilho de uns dentes muito brancos gravaram na nossa alma.
A impressão sentida, o sobressalto do espírito, o bater célere do nosso coração.
Esse diário, se assim devo chamar, é a recordação de uma viagem ao palácio da quimera.
Não se pode apresentar como uma cópia do que passou.
Um diário é sempre a expressão da nossa inteligência influenciada ao máximo pelo romantismo do nossa espírito.
É sempre uma mentira. Mentira que aumenta a saudade dos tempos passados, umas vezes, mentira que entristece, magoa e cria dor, por outras.
Mentira de dois mundos. um de luz, outro de sombras. Num diário há sempre o extremo.
Ou o exagero para o belo e o espiritual, a que chamo sonho, ilusão e luz, ou o exageropara o mal e para a treva, a que chamo mentira má.
Dois pólos. Um em que se costuma adormecer a alma a um cântico divino. Outro em que o cérebro vive sem clarão, sem brilho, sem luz.
Por isto, um diário não é a verdade da vida. Quer ele traduza a felicidade ou os seus desgostos.
O primeiro faz-me idear, divagar, ser paladino do vago e imaterial. O segundo produz o efeito do gelo caindo sobre a chama. A sua leitura apaga o meu entusiasmo.
É por isto que eu não escrevo o meu diário.
Dar-lhe-ia sempre a primeira função, a outra nunca.
E assim, não poderia passar a escrito o acontecimento sem lhe imprimir mais vida, mais criação.
Passava uma frase do meu espírito.
A realidade desapareceria entre as faúlhas da minha alma. E, decerto, não podia eu apresentar amanhã essas folhas divididas em meses, semanas e dias como espelho da minha vida.
Por ele não poderia fazer um estudo, uma investigação, perscrutar o eco dos tempos que passaram, porque a luz iluminadora que lhe imprimira o meu sentimento fora tal que apagara para sempre a realidade.
E aqui está porque não escrevo dia a dia o corte da água pelo meu vapor, o esvoaçar do peixe, banhando-se na luz purificadora da manhã, o novelo de espuma que salpica o mar, o argonauta florindo como uma rosa à superfície da onda, nem o voo dos pássaros que dão as boas manhãs ao madrugador.
Um diário de bordo numa viagem sem mulheres...
Apontamentos de todos os dias!
Para quê? Pois não há sempre a mesma cor, o mesmo brilhar de água, a mesma luz?
Não somos nós há muitos dias o centro do mesmo círculo de água?
É sempre a mesma vida.
É sempre a mesma impressão.
E depois, superior a estas palavras ocas, banais, desfloridas, sem vida - as patetices que o aborrecimento da viagem sugere - falta-me o génio, a força e a vontade para escrever. Génio este, força e vontade estas que existem em excesso, abundância e superavit ao Hernâni, que todas as tardes grava no seu carnet a latitude, longitude e congéneres, e transforma a realidade na mais mística pela fantasia do seu espírito de 23 anos.
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